segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010


Cartas para alguém?



Quem vive a interminável monotonia sente-se incapaz de mover-se. Esta idéia, dentre outras tantas, Anton Tchékhov nos ofereceu com suas obras, o inverno é a iminência de um porvir que não chega nunca. Monotonia. Tons únicos, acinzentados.

E quem assiste à monotonia, o que sente?
Nós espectadores, no calor de nossos invernos, se nos sentimos desconfortáveis, o que nos resta? O movimento de nossos corpos sobre o estofado da cadeira? O suspiro impaciente? O bocejo?

Começo este texto falando sobre a sensação de monotonia ao assistir ao espetáculo O Ruído Branco da Palavra Noite da companhia Auto-Retrato sentada numa poltrona à frente de alguém que certamente sentiu-se bastante incomodado com a situação que envolveu o espetáculo naquela noite. Não sei se era um homem ou uma mulher, se era velho ou criança, mas estava lá e de quando em quando exprimia o seu desconforto diante das cenas. Um desconforto em relação ao tempo prolongado da peça, ao ritmo das cartas recitadas, à simplicidade quase sentimental do corpo dos atores jogando com a ficção, a realidade presente e a realidade passada. Os sons que este alguém propagava no quase silêncio no teatro me fez recordar de uma das frases encontradas numa carta de Tchékhov sobre o coachar dos sapos em cena; segundo Tchékhov o barulho molhado dos sapos em meio ao vazio de sons trazia com precisão o silêncio para a cena, um silêncio puro, inteiro. Ouvir a ansiedade do alguém sentado na fileira de trás foi como ouvir sapos, e aqui não julgo os sapos como criaturas terríveis, não me senti desrespeitada em nenhum momento – acho importantíssimo lembrar desta experiência com os anfíbios para apresentar aqui uma problematização da peça.

O espetáculo apresenta o cruzamento de palavras escritas em cartas e de palavras escritas dramaturgicamente no final do século IXX por artistas do Teatro de Arte de Moscou; a partir de várias correspondências dos artistas do Teatro e fragmentos de peças de Tchéckhov (mais especificamente as quatro encenadas no Teatro de Arte de Moscou enquanto o dramaturgo ainda estava vivo: Tio Vânia, As Três Irmãs, O Jardim das Cerejeiras e A Gaivota) os atores traçam o percurso das inquietações de vários artistas em relação aos seus processos criativos. Não existe em cena, entretanto, a personificação de Stanislávsky, Dântchenko, Meyerhold, Olga Knipper ou Tchékhov, existe o discurso de todos, a declaração crítica e interpessoal sobre os pesares e os prazeres do ofício teatral.

Neste contexto a companhia Auto-Retrato encontrou a possibilidade de aprofundar uma pesquisa acerca do depoimento pessoal já desenvolvida nos primeiros trabalhos do grupo. Através da fala de conhecidos nomes do teatro russo, o grupo apresenta sua visão sobre a carpintaria cênica, de modo a conectar o passado e o presente num ponto de encontro que deveria ser fundamental em todos os processos teatrais: a matéria humana. Sob este ponto de vista o grupo apresenta um vínculo processual muito maduro com as obras escolhidas apresentando inclusive um ponto de vista que vai para além do naturalismo previsto na dramaturgia Tchekhoviana, compondo a cena com várias imagens metafóricas (tais como a fibra óptica transformada em árvores na cena do texto O Jardim das Cerejeiras e a intervenção de uma professora autoritária de interpretação na confissão aflita de Nina, a frustrada aspirante a atriz do texto A Gaivota), entretanto, durante o espetáculo são poucas as vezes que o espectador consegue atingir diálogo com esta ligação. A pergunta é: será que o espectador não iniciado na história do teatro e em suas teias de contextualização política, poética, teórica, consegue estabelecer uma conversa com aquilo que se vivencia em cena? A beleza da escrita de referências teatrais russas dá conta da experiência do espectador?

O processo cênico da construção de um pensamento está posto em cena. A inconclusão do pensamento artístico, as dúvidas que o rodeiam antes da finalização. As dúvidas que florescem em meio ao caos das idéias e oferecem novos mundos a serem revelados, mas qual a reverberação deles na presentificação teatral em O Ruído Branco da Palavra Noite?

Os casacos pesados sobre os atores nos fazem adentrar a atmosfera do inverno russo ou nos causam uma imensa agonia? Nós que somos e existimos em meio ao calor dos trópicos. Esta questão não se encerra nas opções cênicas do grupo, ela diz respeito a algo maior que deve ser pensado: a potência de interpretação que o público tem da obra é composta por diversos tons que não são apenas acréscimos transversais de leitura do espetáculo, a interpretação do público é feita de camadas descortinando a obra, colocando-a num espaço de diálogo com a realidade individual e a realidade coletiva presentes. Neste sentido as palavras que pulsam em cena parecem não bastar, muito pelo contrário, em poucos momentos elas oferecem ao espectador lacunas ou mistérios a serem desvendados; as cartas e as peças tornam-se uma espécie de manifesto de amor ao teatro, a exclamação dos atores sobre o próprio ofício, diante de uma platéia cujas interrogações ficam sem desdobramentos.




E eu aqui, diante de minhas cartas invisíveis, me pergunto: quanto eu contribuo de fato para quem me lê?




Paloma Franca