Eu poderia dizer que gosto desta peça porque nesta peça falta o encontro polifônico de palavras que eu uso habitualmente, e que portanto são palavras que me encantam desde os primórdios, quando visitei minha primeira estrada de palavras.
É curioso que neste dia pós-espetáculo eu tenha prestado tanta atenção aos termos que uso cotidianamente, quase sem notar, percebendo em minha memória imagens silenciosas que ficaram impregnadas em lugares de além-razão. Onde estarão escondidas as palavras que não digo? Em quais pernas ou braços ou lembranças, em quais vazios?
Escolhi para este texto crítico a conversa, entendi ao ver a peça que só assim eu poderia expressar o que restou de idéia neste tempo que já não é mais o da realização teatral, e sim o do pensamento sobre a realização teatral, a elaboração do espetáculo pelo viés do espectador. Tudo aqui escrito, foi suscitado pela experiência do espetáculo e pelo compartilhamento posterior com outros espectadores, na mesma noite.
Convidei dois amigos para irem ao TUSP junto comigo, chegamos um pouco atrasados, na correria para pegar os ingressos. Ficamos no rabo da fila um pouco apreensivos com medo de não conseguir bons lugares na platéia. Agora eu me pergunto se não é um equívoco pensar no bom lugar da platéia quando o espetáculo não segue o rigor da hierarquização dramática na qual o espaço ocupado pelo espectador delimita a visão e a possibilidade plena de visualização e construção de ponto de vista sobre o que é visto. As escolhas cenográficas da peça propõem frontalidade até para as cadeiras mais laterais da platéia. Não uma estrutura rígida, que obriga o espectador a relacionar-se com a obra como se a cena fosse um alvo e o olhar, prestes a abatê-lo, não pudesse cometer erros. A frontalidade presente no espaço cênico do espetáculo Escuro é como a frontalidade presente no quadro de Monalisa pintado por Da Vinci: não importa o ângulo de visão, o observador é sempre engolido pelos enigmáticos olhos da moça.
Burburinhos na escuridão do teatro nos minutos que antecendem o início do espetáculo, e meu amigo Marcelo comenta sobre Cachorro Morto, outro espetáculo do grupo que está em cartaz no Teatro Imprensa; ele diz que tem vontade de acompanhar o grupo como espectador desde que assistiu ao Cachorro. Eu não vi o Cachorro, mas depois de experienciar o Escuro, fiquei curiosa.
A personagem do menino é quase uma linha-guia que conduz o espetáculo. Marcela – uma das pessoas que me acompanhou – depois atentou-me para o fato de que ele é surdo e precisa dos óculos justamente para ler os lábios dos outros personagens que o procuram para revelar segredos e angústias que não podem vir à tona no cotidiano de um clube de lazer, lugar onde se passa a trama. Em minha leitura imediata, pensei ser o menino uma figura fugidia que perdia-se em seu imaginário, trazendo para o espectador seus pensamentos infantis sobre a ausência do pai, presentificando-o através da história do polvo no fundo da piscina do clube – uma mentira talvez contada pelo pai para evitar que o menino sofra um afogamento tentando chegar até o fundo. Os óculos, neste viés, me pareceram um elemento de conexão entre infância e obediência ao mundo adulto. Ao assimilar também a perspectiva de Marcela, imediatamente associei o menino dos óculos a um conto de Maria Lúcia Medeiros chamado Zeus ou A Menina e Os Óculos, no qual uma menina ajuda sua mãe no restaurante, todos os sábados, e para aproveitar este dia intensamente, livra-se dos óculos, respresentantes da clareza cotidiana.
“Para o sábado ela se guardava, se dava inteira, menina ainda. Ninguém desconfiaria que a menina antes de penetrar no cenário tirava os óculos e, míope, percorria as mesas, vendo as silhuetas dos fregueses, não vendo nariz nem cílios.
Ninguém saberia que ela usava óculos de lentes claras e que ela dispensava a nitidez e algumas formas. Que era como se visse tudo pelas suas próprias lentes e mergulhasse assim no cenário agradável com cheiro de sábado, com barulho de sábado, com imagem não muito nítida que ela recobria do jeito que bem entendia e queria, sem medo, sem óculo, ela que os usara sempre desde muito tempo, para ver melhor...”.
O nome do conto, Zeus ou A Menina e Os Óculos, já aponta a idéia de esclarecimento quase onisciente da menina; ela que aos sábados percebe as coisas da maneira que lhe satisfaz, pode também escolher, ao colocar os óculos, vê-las da maneira como são, nitidamente. A Onisciência divina está, portanto, na escolha metafórica da criação correlacionada à realidade. Aquele que tudo sabe e tudo vê, sabe o quanto vê, da forma como escolhe ver. Zeus é aquele que se permite enveredar pelos caminhos tortuosos da criação metafórica em meio à existência concreta das coisas.
Também em Campo Geral, conto de Guimarães Rosa, os óculos aparecem como formas de elucidação do mundo; o jovem Miguilim depois de passar por várias etapas dolorosas de amadurecimento e despedida da infãncia na cidadezinha de Mutum, encontra seu mais surpreendente acaso transformador: o Doutor José Lourenço, médico visitante da cidade que percebe a miopia no garoto e o presenteia com um par de óculos. Depois de tanto ver à seu modo as transformações e os sofrimentos de uma infância que se esvai, Miguilim ao usar os óculos confronta o mundo da maneira que reza a verdade dos homens: pela emocionante e devastadora perspectiva do real.
O menino de óculos do espetáculo Escuro, então pode ser colocado nestes dois lugares de interpretação: ele quase toca neste real devastador, mesmo quando envolve-se muito intensamente com a própria imaginação, tecendo perspectivas criativas sobre as histórias que os outros freqüentadores do clube contam em confissão secreta; assim como está sempre à mercê da organização adulta, guardando segredos, preservando medos e renúncias que em alguma medida o salvam dos perigos.
Neste aspecto, percebemos que a abordagem da dramaturgia e encenação de Leonardo Moreira não se constitui apenas como uma reflexão sobre a impossibilidade da comunicação por conta de deficiências físicas (o grupo tem como referência as correspondências trocadas entre a escritora inglesa Helen Keller, que era cega, surda e muda, e sua professora Annie Sullivan, que sofria com a perda gradativa da visão; e histórias verídicas relatadas pelo neurologista Oliver Sacks); muito mais do que tratar da realidade de pessoas que fisicamente não escutam, não falam, não vêem, Leonardo Moreira constrói uma narrativa sensível redimensionando o ponto de vista do espectador a partir da ausência destes elementos que constituem e definem a plenitude das relações sociais.
A escolha pela alternância entre narrativa e diálogo oferece mais densidade para a composição e desenvolvimento da trama; os diálogos se realizam dentro da possibilidade de cada universo; o surdo-mudo, por exemplo, comunica-se através de libras, entretanto o público, mesmo eventualmente desconhecendo a linguagem, não fica completamente alheio ao discurso, os cortes narrativos transpõem para o espectador, não literalmente, a trajetória individual dos personagens, transformando-os em elementos contadores da própria história, trazendo à tona a figura dos atores, que doam seus nomes para os personagens numa fusão poética revelando autoralidade e método criativo no desenvolvimento da interpretação.
A consolidação da narratividade ocorre dentro do tempo dramático, quebrando-o em episódios. Como vírgulas entre os diálogos, quase como rubricas dramatúrgicas, o discurso narrativo surge ora para contextualizar os acontecimentos, ora para problematizá-los. Em outros momentos, este distanciamento narrativo desafia o público a imaginar se a compreensão do espetáculo está de fato na palavra, se precisa ser alcançada na plenitude da comunicabilidade usual, ou se estamos testemunhando uma história como tantas outras, que pulsando verticalmente na pluralidade, nos atinge de maneira crítica e diferenciada – o espetáculo inicia um processo de multiplicação de pontos de vista tal qual a experiência oferecida pelas lentes dos óculos de grau ou pela falta delas. Tal qual a experiência de tapar um dos olhos e entender o que é enxergar de um lado só. Como a experiência de tapar os dois ouvidos e atingir o mundo através do silêncio.
por Paloma Franca
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