segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Mais Sobre “Cordel do Amor sem Fim”, da Trupe Sinhá Zózima, e a busca por um Teatro Popular


“Quanto mais particular, mais geral”.

- Leon Tolstói


Escrevo novamente sobre a Trupe Sinhá Zózima, que esteve em cartaz no TUSP (Teatro da USP) no segundo semestre de 2009. Se no último ensaio o tema era o espaço público e as escolhas estéticas do espetáculo “Valsa nº 6”, abordarei agora a primeira peça do grupo: “Cordel do Amor sem Fim”, com texto de Claudia Barral, montado no ano de 2007 e encenado (assim como “Valsa nº 6”) dentro de um ônibus.

A peça se passa no sertão de Minas Gerais, às margens do rio São Francisco. Como encená-la na gigante cidade de São Paulo? O grupo optou por levar essa oposição às últimas conseqüências, a partir do espaço cênico. A parte de dentro do ônibus em que se realiza o espetáculo constitui o universo ficcional da cidadezinha: a rede, o alho dependurado, as cortinas de chita. O figurino dos personagens está em consonância com o imaginário do sertanejo. O sotaque é do interior, a música parte de uma viola caipira... Entretanto, os passageiros-espectadores não podem ignorar as buzinas, os faróis, as luzes da metrópole que habitam.

Nesse sentido, “Cordel do Amor Sem Fim” está inserido exemplarmente na busca brasileira por um teatro que dialogue com nossa realidade. Quando, nos anos 50, iniciou-se com renovado vigor a busca pelo “popular”, isso se relacionava com um momento ímpar de industrialização e urbanização. Juscelino Kubitschek prometia realizar “cinqüenta anos em cinco”, as fábricas necessitavam de trabalhadores, o campo expulsava seus moradores. A arte, não mais ditada pelo Estado (pois JK atentou menos que Getúlio para a política cultural) tentava entender o seu lugar na afirmação da nacionalidade brasileira.

Mas a identidade do brasileiro mudava radicalmente, dada a nossa acelerada modernização. O que de essencial se mantinha? Havia, isso sim, um desejo de possuir raízes. A raiz, poeticamente, é o que nos sustenta, o que nos prende ao chão. Por outro lado, a cultura é por definição algo mutante; a cultura fossilizada constitui folclore, e o folclore em última instância não dialoga com ninguém.

Vimos que Suassuna foi buscar nas raízes sertanejas a matéria para suas estórias. Todavia, também recuperou elementos do teatro ibérico – pois desde as grandes navegações o fenômeno da globalização tem sido bastante acelerado. Recuperar alguns elementos de culturas européias é também entrar em contato com raízes nossas.

Sábato Magaldi aborda o mito da “autenticidade”, no teatro com preocupação de ser nacionalista. Para ele “Não há autenticidade nacional, em matéria de arte: há autenticidade artística”.[1] É assim que Suassuna, de tanto retratar o Nordeste, foi traduzido para diversas línguas. Pois o dramaturgo não apenas “recuperou raízes”, ele também criou objetos artísticos significativos. Um outro exemplo é o “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa, que data de 1956 (justamente a época que tratamos, de intensa modernização), e hoje é lido em todo o mundo.

Riobaldo, protagonista de “Grande Sertão: Veredas”, não personifica o “pitoresco” do homem sertanejo. Ele é um ser repleto de complexidade, e sua trajetória-travessia reflete muitas das questões de todos nós. Por outro lado, só as particularidades do meio em que está inserido permitem que circule em Riobaldo tantas questões: é no Rio São Francisco que ele lida com o medo, é na jagunçagem que conhece o amor e a morte. Mais que os temas, a linguagem específica que Guimarães a um só tempo registra e inventa abraçam o brasileiro. Em consonância com o que propõe Magaldi para as artes cênicas: “Os textos que apreendam os temas vivos da nacionalidade e lhes dêem tratamento artístico acham-se num caminho autêntico. (...) No estádio atual do teatro brasileiro, porém, seria mais fecundo se os autores se debruçassem sobre a realidade à volta, tentando captar a linguagem em que o povo se reconhece”.[2]

Agora, voltemos ao TUSP e ao “Cordel do Amor sem Fim”. Na pesquisa do grupo, também não cabe o sertanejo pitoresco, “folclorizado”, fossilizado. Diz a Trupe Sinhá Zózima, em seu edital, que houve uma “busca de compor um entendimento não tão óbvio dos elementos simples e rústicos da vida sertaneja (...). Na interpretação, fizemos vários laboratórios pesquisando a profundidade do sentimento”. Na prática, isso significou uma investigação que incluiu pesquisa de campo (com o violeiro Dito Fernandes) e coleta de materiais artísticos brasileiros (Orquestra Paulista de Viola Caipira, filmes de Mazzaroppi e de Luiz Alberto Pereira), além de estudos teóricos outros (o filósofo francês Gastón Bachelard).

Isso mostra que, no estágio em que estamos já há muito material que claramente se constitui como patrimônio de nosso povo. E, ao mesmo tempo, não é preciso rejeitar o que vem de fora, quando o que vem de fora pode contribuir na criação de um objeto artístico de qualidade.

Sou uma brasileira de raízes não sertanejas. Paulistana, descendente de imigrantes da Europa Oriental, que chegaram direto na tal da urbana e progressivamente industrializada São Paulo. Entretanto, me senti em casa no ônibus da Sinhá Zózima. E não foi apenas um colo, um escape para outro tempo-espaço: foi uma fricção produtiva com minha realidade cotidiana. Imersa no universo ficcional do sertão, fui também levada a olhar para fora. Poeticamente, mas também de modo literal: em dado momento, uma personagem sái do ônibus, e chama a irmã para sair também (coisa que não se realiza, por conta de um grande medo da personagem). Essa cena se deu em pleno metrô Marechal Deodoro, onde por coincidência havia um homem deitado no chão. O público temeu: seria um ferido? Um morto? Dois policiais se aproximavam, boa coisa não devia ser. Mas provavelmente o homem estava apenas embriagado, pois levantou e seguiu seu rumo.

Narro essa cena como se integrasse a própria peça. Porque, estando dentro de um universo ficcional distante da cidade, olhei para a cidade junto com outros espectadores, e de forma qualitativamente diversa. Diz a crítica Leca Perrechil, da Revista Bacante: “Aqui na capital, onde as pessoas podem, durante a necessária rotina, passar 3h30 diárias em um ônibus (...) entrar por diversão num desses transportes para passear pelo trânsito por 50 minutos sem se preocupar em chegar rápido dá um re-significado ao tempo – presente na figura do ônibus. A trupe Sinhá Zózima conseguiu explorar o movimento natural do ônibus, relacionando seu aspecto de estar sempre de passagem e em movimento com a vida dos personagens”.[3] Ou seja: a escolha estética do ônibus não apenas se encaixa com o universo ficcional da obra (já que a fábula é a de uma mulher que, enquanto o rio São Francisco passa e o ônibus passeia, exerce a espera de seu amor. Como diz Mateo Bonffito[4], o deslocamento no espaço – do ônibus - se conecta com o deslocamento no tempo – a espera da personagem). A escolha estética do espaço cênico também fricciona obra e cotidiano.

É interessante que a Trupe Sinhá Zózima vê no ônibus uma possibilidade de “popularizar o teatro” (palavras deles). “O ônibus urbano é um símbolo forte e popular de qualquer cidade, e também é o meio pelo qual a Trupe entende ser possível popularizar o teatro”.[5] Já discuti no último ensaio a noção do transporte coletivo em São Paulo não ser público; mas no caso dessa peça, faz sentido a força do signo. Indo mais adiante, a companhia qualifica o ônibus como “tentativa experimental de teatro de arena intimista”.[6] Considerei importante mencioná-lo, já que a Arena foi (no fim dos anos 50) um recurso importante na realização e disseminação do teatro experimental brasileiro. Se hoje temos um número bem razoável de edifícios teatrais tradicionais, entraves do ponto de vista de sustento fazem com que o local de apresentação ainda seja um problema para grupos de teatro. Mas é claro que a “arena intimista” da Sinhá Zózima tem outras razões de ser, que não a da viabilidade comercial.

Falei de minha experiência como espectadora do “Cordel do Amor sem Fim”. Entretanto, quando Sábato Magaldi se refere a um “teatro popular”, ele enfatiza justamente a possibilidade de obras tocarem, dialogarem com espectadores diferentes[7]. Pude realizar uma atividade com um grupo de adultos estudantes da oitava série do supletivo Cônegas Santo Agostinho, um dia depois de eles terem assistido à peça. A coordenadora mencionara que muitos deles não são de São Paulo. E, de fato, em sua fala havia muito da fala daquelas personagens, advindas do sertão. Interessante como, num jogo simples de “o que eu lembro da peça”, vinha da boca daqueles espectadores frases inteiras das personagens, gravadas dentro da musicalidade do sotaque. Em jogos de improvisação, veio todo um universo sertanejo que vem de fora da cidade, mas não é estranho a ela. Pois a cidade é formada de muitas identidades distintas.

Walter Benjamin[8] descreve a cidade moderna como “cidade de transeuntes”. A vida urbana apela incessantemente para nossa razão operacional, deixando pouco espaço para a subjetividade ser elaborada. Ficamos pobres de experiências: a mídia nos bombardeia de informações, mas ficamos sem vivências passíveis de serem compartilhadas, narradas.

Benjamin aproxima o saber do narrador ao saber do artesão. Ele associa o desenvolvimento da técnica e da tecnologia com o declínio da artesania. Com a reprodutibilidade técnica, o objeto advindo do trabalho humano deixa de carregar a marca da mão de seu criador. Entretanto, o ator de teatro guarda em seu ofício muitas das características do trabalho artesanal. O teatro, por mais que se esforce, não se enquadra facilmente no sistema produtor de mercadorias.

Quem sabe, o “Cordel do Amor sem Fim” nos permita experenciar, a um só tempo, a cidade grande e o sertão. Vivenciamos a espera de Madalena, as canções, os cheiros. E o fazemos dentro do ônibus de nosso cotidiano paulistano.

Nina N. Hotimsky


Bibliografia

BENJAMIN, Walter. “Experiência e pobreza”. In “Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura”. São Paulo: Brasiliense, 1994.

BENJAMIN, Walter. “O autor como produtor. Conferência pronunciada no Instituto para o Estudo do Fascismo, em 27 de abril de 1934”. In “Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura”. São Paulo: Brasiliense, 1994.

BENJAMIN, Walter. “O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”. In “Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura”. São Paulo: Brasiliense, 1994.

MAGALDI, Sábato. “Iniciação ao Teatro”. São Paulo: Ática, 2006.

ROSA, Guimarães. “Grande Sertão: Veredas”. Rio de Janeiro: José Olympio, 1967.

http://educacao.uol.com.br/geografia/ult1701u57.jhtm

Edital do espetáculo “Cordel do Amor sem fim”, da Trupe Sinhá Zózima, enviado ao Tusp no ano de 2009.

Edital do espetáculo “Valsa nº 6”, da Trupe Sinhá Zózima, enviado ao Tusp no ano de 2009.



[1] MAGALDI, Sábato. “Iniciação ao Teatro”. São Paulo: Ática, 2006. Página 96.

[2] MAGALDI, Sábato. “Iniciação ao Teatro”. São Paulo: Ática, 2006. Página 97.

[3] Material presente no Edital da peça “Cordel do Amor Sem Fim”, enviado ao TUSP em 2009.

[4] Em crítica presente no edital da peça “Cordel do Amor Sem Fim”, enviado ao TUSP em 2009.

[5] Edital da peça “Valsa nº 6”, enviado ao TUSP em 2009.

[6] Edital da peça “Cordel do Amor Sem Fim”, enviado ao TUSP em 2009.

[7] MAGALDI, Sábato. “Iniciação ao Teatro”. São Paulo: Ática, 2006.

[8] Além das leituras presentes na bibliografia, tive por referência a aula que José Sérgio de Carvalho ministrou no CAC, dia 10/11/2009, por ocasião da Mostra de Licenciatura.

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